quinta-feira, 29 de outubro de 2015

CLARICE LISPECTOR, O AMOR E OUTROS ESCRITOS

Texto produzido em 2009.

Ela escreve para digerir a existência, fazer sentido do que lhe parece insondável e, por isso mesmo, assustador. Assim é Clarice Lispector em seus escritos que brotam de dentro para fora, impressões fundas, rasas, alegres, tristes, tão variadas quanto todos os adjetivos, de todas as línguas existentes. Jogo de sombras e luz que a vida lança sobre homens e mulheres, na medida em que corre.

Mas escrever para viver é diferente de viver de escrever. A primeira opção está ligada a uma necessidade profunda de algumas criaturas de dar sentido a sentimentos, experiências, realidades. Faz parte de um esforço de autoconhecimento e cura da solidão mais agreste, da dor mais profunda e do prazer mais intenso. A segunda pressupõe uma exposição dolorida à crítica alheia, ao julgamento estético e de conteúdo, à empatia com os leitores e seus interesses, à máquina de produção que paga os salários, aquece o mercado editorial e resulta em best-sellers ou fracassos retumbantes.

O repórter que aspira a escritor se esforça para retocar a realidade dos fatos para que cheguem mais perto da ficção. Busca arrancar lágrimas, risadas ou indignação a partir dos ingredientes que encontra na rua, nos relatórios, nos gabinetes e nas aspas de alto impacto – muitas vezes esquentadas no micro-ondas da redação. Mas se esconde por trás da imparcialidade, como se o seu ofício de quase-escritor pudesse passar despercebido o tempo todo. Fica sempre no quase, no projeto de literato, ou de autor de verdade, preso às amarras dos fatos e da maneira como são produzidos pela indústria da notícia.

Nessa eterna tensão entre realidade e ficção, o repórter-escritor corre contra o tempo do fechamento implacável dos jornais diários – e contra a mediocridade dos textos pré-moldados pelas cinco perguntas básicas do jornalismo ensinado na escola: o que, quando, onde, como e por quê?  Nos furos deixados pela fórmula clássica, escorre o mais pungente e verdadeiro da realidade que nos cerca, da existência das pessoas e do próprio repórter. Jornalismo e literatura parecem inconciliáveis, embora estejam sempre namorando.

O ficcionista se expõe, sem a rede de segurança dos fatos que embasam a narrativa jornalística, à crítica implacável e ao fracasso. Mesmo assim segue preso às restrições impostas pelo interesse atual do público leitor neste ou naquele gênero, nesse ou noutro tema, na febre do momento do mercado editorial. A libertação pretendida por quem escreve para viver parece, portanto, inalcançável aos que vivem de escrever.

Penso em escrever em um blog, e me sinto como se fosse tirar a roupa em público, na internet. Hoje está na moda o escrito intimista que revela os detalhes da vida mais particular dos autores, que vivem de relatar suas jornadas de autoconhecimento. A minha começou quando ainda era garota e imaginava que um dia teria vivido o suficiente para poder escrever um livro. Na minha cabeça de então, só quem tinha experiência de vida poderia ser autor, seria uma espécie de pré-requisito necessário ao ofício. Pensava que depois dos 30 anos, com certeza teria adquirido bagagem suficiente para iniciar essa viagem. Mas já estou às portas dos 36 – e continuo inédita. Pior, cada vez mais insegura a respeito do tal livro cujo tema segue sendo um grande ponto de interrogação.

Lendo “Outros Escritos” de Clarice Lispector – presente do meu amor –, não consigo deixar de me identificar com a autora, que começou a escrever por necessidade absoluta, como eu. Lembro dos meus primeiros diários, entre os nove e os dez anos, refúgio no qual buscava sentido para aplacar os fantasmas contra os quais lutava no dia a dia, sem ter a coragem de contar a ninguém sobre eles. Na solidão profunda de quem teme ver sua imagem destruída por revelar aos outros, mesmo os mais próximos e amados, as fraquezas que rondam sua alma, encontrava no hábito diário da escrita um porto seguro. Local retirado do mundo, no qual é permitido explorar todas as coisas, sem medo de retaliações ou críticas, sem limites. É isso que chamo de escrever para viver, buscar um pedaço de papel para organizar pensamentos, desabafar sentimentos e, principalmente, encontrar a libertação dos tais fantasmas ou macaquinhos no sótão, como diria o menino maluquinho de Ziraldo. Um ato mágico para criaturas que precisam digerir a existência porque sentem que, se não o fizerem, serão destruídas por ela. Daí minha identificação com Clarice.

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Agora um parêntese sobre o amor – o meu. Um dia chegou em casa e disse que tinha comprado um presente para mim. Despretensiosamente, como é bem do seu feitio. Logo na capa do livro, uma poesia toda rabiscada sobre “o peso da palavra não dita, prestes quem sabe a ser dita...” “Danado! Como ele sabe?”. Senti que ele desnudava minha alma, de uma maneira insuspeita. Que, na sua rotina corrida e na sua aparente distração, me conhecia profundamente, apesar da minha dificuldade atávica de deixar o outro entrar e saber quem sou de verdade. Uma onda de gratidão me invadiu junto com uma grande descoberta: o amor nos liberta da necessidade de buscar refúgio num pedaço de papel. Eureca! Há outra maneira mais prazerosa e COMPARTILHADA de digerir a existência. Desde então, penso que não preciso mais escrever para viver, me sinto finalmente capaz de simplesmente viver. O negócio é que continuo gostando de escrever. Será esse o “momento mágico” que minha imaginação de menina criou quando a bagagem está finalmente pronta para se começar a viagem da autora?  A seguir cenas dos próximos capítulos!

GOSTOU?! #debaixodosipes

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