sexta-feira, 25 de março de 2016

JEQUITIBÁ



Foto: Marina Oliveira.

Há quase quinze anos atrás, quando conheci meu amor, tínhamos mania de brincar de discutir sobre religião. Ele se fazia de agnóstico convicto e, embora filho de uma família profundamente católica, gostava de falar mal dos padres e da igreja. Eu, católica praticante ao cubo, criada dentro da igreja desde os nove anos de idade e ultraparticipativa nos movimentos jovens. Digo “brincar de discutir” porque, no fundo, eu duvidada do radicalismo dele com relação a esse assunto e ele do meu. O tempo mostrou que tínhamos ambos razão, como em quase toda discussão onde o calor do momento e o fundamentalismo das missões não fazem a gente errar a mão nem no tom e nem nos argumentos.

No meu primeiro encontro com a morte, aos 17 anos, quando perdi minha mãe, quase nove anos antes de conhecer meu marido, gostava de ir ao cemitério, sozinha, e ficar na beira do túmulo dela desabafando todo choro e as dúvidas que não tinha coragem de mostrar em casa ou aos amigos. Só nas missas de domingo, ajoelhada depois da comunhão, me permitia desabar como ali. No fundo, pedia perdão, sem saber exatamente por que, a um deus que decidiu assim, certamente por razões perfeitas, me tirar tão cedo a mãe que, afinal, ele mesmo tinha me dado. Permitia-me, apenas, a alegria eufórica da Páscoa em que a promessa da ressurreição – voltar a encontrar em corpo e alma a minha mãezinha – me preenchia da esperança de um dia merecer essa recompensa, obviamente depois do fim do mundo e do juízo final...

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sexta-feira, 11 de março de 2016

MOSAICO



Fotos: Daniela Rojas.

Há sete anos, cansada de me sentir permanentemente dentro de uma panela de pressão, tomei a decisão de, a qualquer custo, encontrar um jeito mais leve de viver. Ao botar o pé na estrada, tinha fantasias diversas sobre os perigos que me aguardavam – possíveis rompimentos com pessoas amadas, abandono do trabalho, do casamento, da cidade, e por aí vai. Mas saí disposta a tudo! No caminho, entretanto, me deparei com desafios muito diferentes dos imaginados e muito mais ordinários do que jamais sonhei.

Um dos primeiros e mais difíceis foi aprender a fazer mosaico. Sim, sempre achei muito bonito esse negócio de, a partir de pequenos pedaços de qualquer material, montar uma outra imagem, maior, mais bonita e harmoniosa do que os cacos originais da qual foi feita. Uma reciclagem artística de materiais, muito interessante.

Mas nunca confiei tanto assim nem nas minhas mãos, nem no meu senso estético, para me aventurar a fazer um mosaico ou qualquer outra atividade artesanal.  Na tentativa desesperada de escapar daquela panela de pressão, entretanto, valia qualquer coisa, até isso! Nas aulas, mal conseguia prestar atenção no que dizia a professora, de tanto barulho que fazia a minha crítica interna. Dizia coisas assim: “Olha em volta para quem está neste curso! Só gente desocupada, velha, frustrada, sem trabalho ou coisa melhor para fazer. É isso mesmo que você quer para você? E blá, blá, blá, blá...”, sempre vociferando, lá de dentro.

Mas, felizmente, nem esse boicote interno violento, nem tantos outro fantasmas que tinha no sótão (e ainda tenho, apesar de mais mansos, devo confessar), foram capazes de mudar minha decisão de escapar dos padrões antigos que me faziam sentir aprisionada na bendita da panela de pressão. Muito tempo e peças depois, feitas por essas maozinhas que teclam agora no computador, tomei um enorme gosto por fazer outros tipos de mosaico, em especial de imagens, espécie de quebra-cabeça dinâmico da própria vida.

Um dos meus favoritos é composto por imagens da minha prática de quase seis anos ininterruptos de yoga. Nesse caso, fica bem mais fácil do que quando tenho que fazer minhas peças artesanais, porque só junto as fotos - tiradas por minha amiga e mestra, sempre que sente vontade - e mando para outra amiga que, com sua sensibilidade e talento, monta o mosaico. Talvez esse processo de produção seja grande parte do aprendizado que me libertou da panela de pressão. A consciência de que o afeto não gera nenhuma obrigação, dívida ou coisa parecida. Por isso, podemos pedir e dar a quem amamos, aceitando o sim e o não, como respostas igualmente válidas, sempre. Mas sabendo que o afeto está acima ou, melhor dizendo, está na base dessa interação, como a terra firme sobre a qual nos movimentamos.

Os diferentes pedaços desse mosaico de posturas e flashes da prática de yoga me lembram hoje que houve uma ESCOLHA pessoal no começo desse caminho, a de NUNCA MAIS voltar àquela panela de pressão. Essa reafirmação torna-se especialmente importante quando, no caminho, caindo do azul, como diria Lulu Santos, a gente encontra com a morte do nosso parceiro de vida, ator fundamental em todos os momentos dessa trajetória. Nos olhos dele, no nosso diálogo aberto e sem meias palavras, eu confirmava cada conquista e onda de descompressão, em direção à LIBERDADE, sentido mais amplo de todo esse processo, certamente.

Ficar sem a presença física dele e seguir caminhando faz a gente duvidar de tudo, mas principalmente de mim mesma. Em algum momento, vem uma armadilha, quase canto de sereia, que faz atribuir todo o valor dessa construção a quem se foi, principalmente quando foi o homem quem partiu. Somos produto da nossa cultura, por mais que tenhamos ganhado consciência, ao longo da vida, da opressão que ela traz para toda e cada uma das mulheres. Ser livre “protegida” pela benção de um marido que “aprova” suas condutas libertárias e até as estimula sempre será mais fácil no mundo em que ainda vivemos do que ser livre simplesmente, sem homem nenhum ao lado.

E, quando o correr da vida, como diria Guimarães Rosa, nos exige performance, desempenho no trabalho, na maternidade, no provimento das necessidades materiais dos nossos filhos, no trânsito tão agressivo, na batalha por conseguir um homem... a panela de pressão vem do além para tentar nos engolir de novo. Parece ficção científica trash, mas para quem conhece bem o funcionamento de um artefato desse tipo e já viveu dentro de uma, e acredito que toda brasileira já teve suas experiências nesse campo, é literalmente a hora do pesadelo.

Felizmente, como eu sempre gosto de dizer, a história não volta atrás NUNCA. E a consciência adquirida em cada passo dado nos lembra que por, mais profundos e transformadores que sejam os nossos encontros na vida, somos nós mesmos quem escolhemos a cada dia o próximo passo. Ter essa noção faz perceber finalmente que hoje, nem meu pé, tamanho 35, cabe dentro dessa panela de pressão. Ufa! Aleluia! Namastê!

A dor de perder o meu amado, a tristeza pelo tempo nesse mundo que não compartilharemos, a saudade do seu corpo, das suas ideias e, principalmente, da sua presença nessa caminhada seguem comigo, mas não me pressionam. Desde que eu não lute contra elas e nem transforme o desejo por um tempo menos intenso emocionalmente em mais uma pressão para recompor todos os campos da minha existência. Esse processo está em curso, naturalmente, e não se parece em nada com subir uma escada, na qual os degraus medem o ponto em que me encontro. Está muito mais para um lago, rio ou mar, cujas correntes se fazem e desfazem o tempo inteiro, mas que mantém uma coerência absoluta com os movimentos da vida e do meu coração – e basta.

PS – Aos meus leitores e leitoras, querid@s, quero dizer que não tenho mais nenhum texto guardado para publicação. Então agora o blog traz o desafio da página em branco para mim. Mas como meu objetivo aqui é ter PRAZER em escrever e compartilhar, não vou deixar a pressão da produção me assustar e nem pautar. Vou seguir fluindo com o tempo disponível para esses escritos e com as palavras que pedirem para serem lançadas nesse espaço cibernético. Afinal, o afeto aqui trocado não gera obrigação de nenhuma das partes...

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